Muita da abundante literatura recentemente produzida sobre o teletrabalho, estimulada pelas condições particulares criadas pela pandemia de Covid-19, focaliza-se no problema do isolamento do trabalhador, chamando a atenção para os riscos da solidão e do isolamento a que está remetido no seu domicílio, privado do contacto com os colegas e as chefias.
Desde logo, esta noção parte de uma premissa errada: “teletrabalho” não tem de significar “trabalho em casa” nem “isolamento”, como podem testemunhar os muitos teletrabalhadores independentes que antes do confinamento usavam assiduamente o Centro Cultural de Belém, o Starbucks mais próximo ou outro local com bom sinal de WiFi para exercer a sua atividade. Em todos os casos em que a atividade não exige um certo grau de confidencialidade – e.g. atendimento de clientes, diálogos envolvendo informação sensível – o trabalho a partir de casa resulta de condições impostas pela pandemia e não das caraterísticas intrínsecas do teletrabalho, que significa tão somente “trabalho à distância”.
Nos casos em que tal isolamento existe, o problema é real e deve ser encarado. Contudo, com propositada ironia, entendo que a principal vítima de isolamento e solidão não é tanto o trabalhador como o seu chefe direto, ele também privado da companhia dos seus colaboradores.
É que no nosso país a cultura de liderança prevalecente nos locais de trabalho ainda pode ser descrita como de “comando e controlo”, e tanto o comando como o controlo pressupõem a presença dos colaboradores junto do chefe, justamente para que este possa comandar e controlar – a qualquer momento, a seu bel-prazer. O presentismo é a antítese da delegação e do empowerment e como tal é incompatível com a formulação de objetivos a prazo (fazer planos dá muito mais trabalho do que improvisar ordens no momento) e com a definição de critérios objetivos de desempenho (que reduzem drasticamente a discricionariedade do avaliador em relação ao “quê” e ao “quando”). Abdicar destes (maus) hábitos por força do afastamento físico dos colaboradores é uma autêntica revolução e um motivo de pânico. Frequentemente, a ansiedade provocada pela conjugação do presentismo com a ausência dos colaboradores – perdoe-se-me a incongruência – é tanta que leva aos famigerados telefonemas e e-mails fora de horas, sem respeito pelo descanso e pela vida privada daqueles últimos. Uma verdadeira manifestação de saudade!
Por isso, da próxima vez que lerem um artigo sobre os riscos de isolamento dos trabalhadores “WFH” (working from home) e da desorganização dos seus horários, desconfiem. É provável que seja apenas o grito angustiado de mais um chefe solitário.
Como dizia um reputado investigador do MIT, Michael Schrage, num recente webinar, “o teletrabalho funciona, o problema é que ninguém consegue explicar como”. Com esta reflexão, Schrage procurava chamar a atenção para a necessidade de aplicar instrumentos de medida mais rigorosos e objetivos na compreensão do teletrabalho, e simultaneamente para as ameaças que tal implica. O que é que está em causa? Hoje dispomos de ferramentas analíticas – data analytics, machine learning… – que nos permitem analisar em tempo real (ou quase) qualquer output de qualquer atividade, seja ela presencial ou remota. Até mesmo informação eminentemente qualitativa – como por exemplo o grau de motivação de uma equipa – não escapa ao escrutínio de poderosas ferramentas de análise de conteúdo das comunicações trocadas entre os seus membros (até mesmo os telefonemas podem ser analisados por meio do processamento da linguagem natural), ou de social network mapping a partir dos mesmos dados.
As vantagens são evidentes – informação abundante e detalhada em tempo real – e as ameaças também: um inaceitável risco de devassa da privacidade dos trabalhadores. Será então este o verdadeiro custo do teletrabalho? Será este o preço a pagar para entender os seus mecanismos e geri-lo com maior clarividência?
Não necessariamente. Existem formas de mitigar e mesmo de neutralizar aquela ameaça. Em primeiro lugar, a agregação e a anonimização da informação oferecem alguma proteção. Mas a verdadeira questão está no destino e nos destinatários dessa informação e na sua transparência. Uma coisa é ela ser do conhecimento restrito do chefe e permanecer opaca para os trabalhadores aos quais diz respeito, e outra é ela ser disponibilizada a este último de forma absolutamente transparente e sem restrições. Neste caso, torna-se uma fonte de empowerment e não de subjugação.
Claro que com isto alguns chefes irão sentir-se ainda mais isolados e solitários: uma equipa “empoderada” não precisa de comando e controlo. Precisa de um líder, mas este não tem problemas em ser transparente e por isso nunca haverá de caminhar sozinho.
A frase original é “remote work works, but people don’t really understand how work actually gets done”.
João Paulo Feijoo
Consultor, docente e investigador
Julho 2020