O mito do líder providencial

Um dos preconceitos mais arreigados em matéria de liderança é a crença persistente de que o sucesso de uma organização, de um país, de um empreendimento, pode ser atribuído às caraterísticas excecionais do líder. Este mito do “grande homem” esteve aliás na origem de uma das primeiras teorias da liderança – a chamada “teoria dos traços” – que procurou identificar os fatores personalísticos, os atributos cognitivos e mesmo as caraterísticas físicas partilhados por líderes de reconhecido sucesso. Problema: nunca foi possível identificar um tal conjunto de traços em comum; qualquer que seja uma caraterística presente num líder, é sempre possível encontrar um outro líder igualmente bem-sucedido com a caraterística oposta: uns são extrovertidos, outros introvertidos; uns dominadores, outros discretos; uns sempre presentes e envolvidos na ação, outros distantes e liderando na retaguarda.
Estas aparentes contradições são inevitáveis, por motivos que veremos mais adiante. Por agora, centremo-nos num outro problema, bem mais grave: é esta crença num líder providencial, no proverbial “salvador da pátria”, que está na origem da entrega do poder a tiranos – ao nível dos estados, das empresas ou mesmo das coletividades de bairro – que, na ausência de instituições suficientemente fortes ou por vezes apesar destas acabam por centralizar em si todas as decisões, de criar um vazio em seu redor e de eternizar-se no poder, como evidenciam os casos bem presentes de Vladimir Putin e de Xi Jinping.
De nada serve esta crença ser contrariada pelas evidências. A História está repleta de exemplos de líderes encarados como salvadores providenciais que, após alguns sucessos iniciais, conduziram os seus países ou as suas organizações à catástrofe em resultado da sua megalomania e do seu despotismo. Claro que há também muitos outros exemplos de “grandes homens” (e mulheres), por vezes autoritários e quase sempre decisivos, que hoje figuram no panteão dos líderes lendários. Líderes como Churchill, Roosevelt, Napoleão, Lincoln, Eisenhower ou Isabel I, para mencionar apenas alguns. Vale a pena olhá-los mais de perto, para escrutinar as suas particularidades e perceber as semelhanças.
A semelhança que mais salta à vista é a presença de fortíssimas equipas de colaboradores reunidos à sua volta, cuidadosamente selecionados com base na confiança pessoal mas sobretudo na competência e no caráter. Colaboradores que eram eles próprios excelentes líderes, e que nalguns casos podiam rivalizar (ou tinham mesmo rivalizado, como nos casos de Churchill e de Lincoln) com o líder supremo. O contrário de Yes Men, portanto.
O sucesso militar da França Napoleónica ficou a dever-se não só à mestria estratégica e tática (e também logística) do próprio Napoleão mas também ao extraordinário escol de lugares-tenente de que soube rodear-se, Marechais do Império de origem plebeia a quem a Revolução abriu as portas de uma carreira brilhante, baseada no mérito em vez de no sangue. Churchill, apesar do seu temperamento impulsivo e opinioso e dos seus frequentes choques com os comandantes militares, soube sempre acatar o juízo coletivo acima dos seus ímpetos pessoais. E Eisenhower, indistinto como comandante militar, conseguiu manter quanto bastasse de concórdia para derrotar o inimigo comum entre personagens tão altivos e conflituosos como os generais Montgomery e Patton e o próprio Churchill, graças aos seus dotes de hábil diplomata, árbitro e conciliador.
É esta a essência da liderança: a de uma relação em vez de uma posição. Como já escrevi nesta coluna, “liderança” rima com “dança”, e tal como nesta resulta muito melhor quando os parceiros se esforçam por ajustar-se um ao outro do que quando um deles é passivamente arrastado. Significa isto também que tal como não podemos dançar da mesma maneira com todos os parceiros, também o líder tem de ajustar o seu comportamento ao dos seus colaboradores. É por isso que a Teoria dos Traços carece de fundamento: é que a liderança é situacional, ou seja, o comportamento eficaz depende das circunstâncias – do tipo de problema enfrentado, dos colaboradores, dos recursos disponíveis, etc. O líder eficaz deve ser autoritário nuns casos, participativo noutros; estar presente no calor da refrega, ou dirigir os combates à distância. Não há nenhum atributo ou tipo de intervenção que garanta o sucesso em todas as situações.
Mas há escolhas que o maximizam. E porventura a mais importante e decisiva é fazer da liderança um trabalho coletivo. Não no sentido da obrigatoriedade de consenso (embora este possa ser o mais apropriado nalgumas situações) mas do diálogo permanente, da consulta sistemática, da escuta ativa, da procura da diversidade de opiniões – mesmo as mais divergentes, ou melhor, sobretudo as mais divergentes.
Perante a crescente complexidade dos problemas e a amplitude e profundidade dos conhecimentos necessários para os enfrentar, a liderança não é tarefa para uma pessoa só. O líder precisa do contributo de colaboradores de elevadíssima competência em áreas que ele próprio não domina, naturalmente conscientes do seu valor e seguros das suas opiniões. Se não souber aproveitar os seus talentos, aceitar as suas ideias, fazê-los funcionar como um todo e polarizá-los rumo a um objetivo maior do que eles próprios, por mais “providencial” que seja jamais terá sucesso.

 

João Paulo Feijoo

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