Nas vésperas do 18º Congresso da APAT – Associação dos Transitários de Portugal, a Logística Moderna falou com o seu presidente, Paulo Jorge Mata Sousa Paiva, que fez uma análise daquilo que é a actividade dos transitários e do seu papel relevante no funcionamento das cadeias de abastecimento, nomeadamente num período de desafios acrescidos.
Logística Moderna – O Relatório de Tendências ISCTE/APAT (produzido para caracterizar o sector e apresentado durante o último Congresso da APAT), mostrou um sector saudável. Entretanto todos tivemos de enfrentar uma pandemia, como está hoje o sector?
Paulo J. M. Sousa Paiva – O sector a nível global apresentou recuperação e tendência para crescimento para níveis pré-COVID a partir do 2º trimestre deste ano. Em Portugal o sector acompanhou esta tendência. É expectável que a maioria das empresas estejam a laborar a níveis minimamente normalizados (comparados com 2019) até ao final do ano e início de 2022.
De uma forma geral, as cadeias de abastecimento foram garantidas, conferindo aos transitários uma maior notoriedade no papel central na gestão dessas mesmas cadeias. Em maior ou menor consistência, o trabalho, e bem assim a receita dos transitários, mesmo correspondendo a uma percentagem mais baixa do que seria expectável em ano dito normal, permitiu que as empresas, felizmente, mantivessem a porta aberta. O que infelizmente muitos sectores da economia não conseguiram que acontecesse.
A primeira vaga da COVID-19 foi complicada a nível global. Os transitários ajudaram o país a atravessar uma fase complicada e conseguiram embora com limitações fazer com que bens que eram absolutamente necessários continuassem a chegar, como vê a APAT esse esforço? E da parte do Governo de Portugal houve o apoio necessário?
A APAT desde o início funcionou a nível institucional, colaborando com o Ministério da Economia, garantindo por exemplo que quando as fronteiras encerraram, fossem garantidas condições de passagem para os meios de transporte que asseguravam o fornecimento de material prioritário para o combate à situação de pandemia. A esta distância e atendendo às condicionantes na altura, consideramos que houve uma resposta adequada e dentro do possível, ajustada às necessidades, também por parte do Governo. Lembro que, por exemplo paras as Regiões Autónomas, nunca houve interrupção das cadeias de abastecimento, muito pelo esforço conjunto dos transitários e dos armadores nacionais.
Neste momento o fim da pandemia começa a estar à vista. Quando pensávamos que iria ser possível retomar a actividade normal, enfrentamos a continuação de alguns problemas e o aparecimento de outros. Por exemplo, a oferta de transporte aéreo e marítimo não está nos níveis que deveria, o que tem feito os preços subirem. Qual o impacto desta situação na actividade dos transitários?
Obriga a uma maior flexibilidade e adaptação, provocando uma busca incessante de soluções que pelo menos atenuem esta exagerada subida generalizada dos fretes. Infelizmente a subida dos preços não foi acompanhada pela manutenção ou mesmo melhoria da qualidade do serviço providenciado pelas transportadoras. Conclusão, os transitários despendem muito mais horas de trabalho para assegurar que é mantido um nível de serviço aceitável para os nossos clientes.
Também os voos comerciais desempenham um papel crucial na carga aérea. Como é que as empresas estão a gerir as limitações do número de voos e da capacidade instalada?
O período crítico aconteceu em Março/Abril de 2020 em que a totalidade dos voos estiveram suspensos. Em 25 anos de trabalho neste sector, foi a primeira vez que registei zero envios de carga aérea nos voos comerciais de passageiros naqueles meses. No entanto, relembro que mesmo nessa altura os transitários trabalharam para garantir o abastecimento dos bens essenciais ao combate da pandemia, através da organização de vários voos cargueiros charter. Neste momento, apesar de ainda haver algumas reduções na frequência e quantidade de voos, a oferta de soluções tem crescido com a reabertura de rotas. A tendência será para continuar a crescer, mediante o incremento da confiança das pessoas e a maior facilidade em voltar a viajar.
Congestionamento nos portos internacionais é «difícil de gerir»
No que diz respeito ao transporte marítimo há congestionamento em muitos portos internacionais (EUA, Reino Unido e Ásia) que continuam a causar problemas. Esta situação tem afectado os transitários em Portugal?
Do ponto de vista operacional, esta situação é muito complicada de gerir. Por um lado, temos as expectativas dos nossos clientes no cumprimento de lead-times, políticas de preço justo, disponibilidade de equipamentos e frequência de navios. Por outro lado, os nossos parceiros em quem confiamos fazerem parte da solução, continuadamente apresentam-nos dificuldades seja por redução ou cancelamento de escalas, seja por escassez de equipamento, que levam a um incumprimento grave dos bookings colocados pelos transitários e carregadores. Significa que o esforço despendido para garantir um mínimo de fiabilidade em cada envio, é muito maior. Essa exigência extra, tem de ser colmatada com os nossos recursos tecnológicos, mas sobretudo com muita intervenção dos nossos recursos humanos. Não é descabido dizer que praticamente cada envio, quando antes tinha já uma componente forte de automatismo (muitas vezes mais de 60 ou 70% das fases de envio estavam asseguradas por automatismos), agora praticamente exige intervenção directa de mão humana em todas as fases reduzindo os automatismos para 20 ou 30%. Logicamente, esta situação resulta num forte aumento nos gastos operacionais.
Há ainda o problema da falta de contentores marítimos e a falta de disposição para aumentar a sua produção, por parte dos maiores produtores, nomeadamente empresas chinesas, o que tem causado um aumento grande de preços. Quais são os maiores constrangimentos gerados por esta situação?
No encadeamento da resposta anterior, este é outro factor que contribui para a má prestação do nível de serviço das companhias de navegação. Torna-se por isso pouco ou nada aceitável que com tão fraca prestação se verifiquem os resultados financeiros históricos que a larga maioria dos transportadores marítimos regista actualmente.
O preço elevado dos combustíveis também tem levado ao aumento do custo de transporte. De que forma é que se reflecte no sector?
Esta componente do preço do transporte foi desde há muito tempo assegurada pela criação de taxas de combustível que são componentes variáveis do transporte. O preço elevado concorre para a mudança do paradigma da logística, abrindo portas para outro tipo de alternativas mais ecológicas que antes seriam inviáveis e que agora se tornam em verdadeiras soluções competitivas. Por outro lado, assistimos a uma mudança das quantidades e frequências de transporte das matérias e bens, privilegiando menores quantidades com maior necessidade de frequência.
A actividade de transitário tem sentido o impacto da falta de motoristas?
Sim, na medida em que pontualmente se verificam escassez de meios de transporte que permitam ao sector dar resposta imediata às necessidades dos nossos clientes. Esse impacto é minimizado pela possibilidade em encontrar soluções multimodais. Nada mudou na mentalidade do nosso sector. A cadeia logística precisa de soluções, os transitários apresentam as soluções que melhor se adequam em cada momento.
Competitividade no comércio internacional
A quebra na actividade económica comprometeu cadeias de abastecimento e fluxos de mercadorias. Apesar da retoma e a melhoria da economia, há que lidar agora com a limitação da capacidade instalada no transporte de carga. Como olha para esta situação?
Acredito que a capacidade instalada se vai ajustar à procura por serviços de logística, na mesma medida em que os fluxos de mercadoria se ajustam a novas realidades. As cadeias globais de alto valor, que representam 30% do valor total das mercadorias transportadas, serão um esteio na manutenção e retoma de vários dos fluxos que já existiam, mas sobretudo na criação de novos fluxos.
Com a pandemia assistiu-se a algumas novidades como o transporte ferroviário e rodoviário da China para a Europa. Tem relevância para Portugal e para os transitários portugueses?
Para Portugal terá tanto mais relevância, quanto essas soluções apresentem forma de colocar o país nas rotas do comércio internacional, sobretudo se servirem como alavanca na competitividade das nossas exportações e na fluidez das nossas importações. O que interessa aos transitários portugueses é que tenhamos um país cada vez mais forte e competitivo no comércio internacional, porque isso significará melhores e renovadas oportunidades de negócio também para os transitários.
As infraestruturas assumem uma importância única no transporte de carga. Que análise faz das infraestruturas existentes e do investimento em curso?
Não podemos falar de infraestruturas sem incluir o aeroporto, a info-estrutura, destacando ainda a organização aduaneira. Há investigação científica que comprova haver uma relação directa entre a organização aduaneira e o crescimento da economia e do comércio de determinado país. O objectivo de alavancarmos cadeias de alto valor – GVC – em Portugal assente em criação de condições logísticas tem de ser intrínseco a qualquer programa de investimento.
A logística nacional, para ser um factor de competitividade tem de ser enquadrada na condição de existir enquanto ecossistema. Esta premissa é mais importante do que despejar dinheiro inconsequente e isoladamente em qualquer das infraestruturas vitais para a competitividade nacional. Precisamos, por exemplo, de perceber e aceitar que a capacidade aeroportuária tem de ser pensada em integração com as outras infraestruturas e com o sistema fiscal e aduaneiro, tudo suportado por tecnologia de informação de última geração. Ou que o sistema ferroviário nacional tem de estar sustentado por plataformas logísticas, sendo o transporte pesado por excelência, que aproxima os portos e aeroportos do seu inland.
Só assim poderemos aspirar a termos uma maior fatia do negócio na Península Ibérica, mas também funcionarmos como uma das portas para o resto da Europa e para as Américas (funcionando como gateway).
Os transitários sempre fizeram parte das cadeias de abastecimento nacionais e internacionais, mas hoje muitos oferecem serviços logísticos e de transporte. Considera que esta tendência está para ficar e se vai intensificar?
O transitário sempre foi um operador de logística internacional. Na prática isso significa que, assumindo que a tipologia e natureza dos serviços logísticos e de transporte, não diferem pela localização, os transitários sempre desenvolveram actividade logística seja ela de origem nacional ou internacional. Cada vez mais os nossos clientes que operam internacionalmente confiam as operações de logística como um todo, integrando assim o nacional com o internacional. Não nos podemos esquecer que, para as regiões dos Açores e Madeira, os transitários desempenham um papel fundamental, assegurando não só o transporte, mas cada vez mais os serviços logísticos localmente.
«Virar as costas à digitalização é virar as costas ao mercado»
Como encaram os transitários os problemas e as oportunidades que a digitalização das cadeias de abastecimento está a colocar? Que impactos específicos têm sobre as empresas transitárias? A APAT considera que a digitalização é fundamental para a continuação do sector?
O futuro pós-pandémico na logística internacional será uma combinação híbrida de coordenação virtual e colaboração presencial. Estaremos perante a exigência de competências envolvendo uma cada vez maior digitalização. No entanto, dadas as actuais limitações da tecnologia, o “toque humano” estará sempre presente para alcançar inovações ou resolver problemas complexos de forma mais eficaz. Só com o contato personalizado é possível construir e manter relações de confiança.
A digitalização é o futuro de variadíssimas actividades, a nossa, pelo nível de exigência no rigor da informação e rapidez na tomada de decisões exigível pelo mercado, está compelida a abraçar a evolução tecnológica. Virar as costas à digitalização é equivalente a virar as costas ao mercado. Os transitários devem prosseguir estratégias de investimento que os habilite a continuar a comunicar e interagir com as cadeias de abastecimento. Se o fazem de uma forma global ou intervindo em nichos, variará para cada empresa.
Do meu ponto de vista, não é complicado efectivar a transformação de uma empresa para implementar a sua digitalização. Existem soluções fiáveis e com gastos controlados que permitem inclusive microempresas serem competitivas. A questão a ultrapassar reside nas barreiras que a própria empresa possa colocar à mudança para o digital. É preciso estar receptivo a mudar e sobretudo, que haja motivação dos recursos humanos. Por outro lado, a inovação está a passar das novas tecnologias para o talento das pessoas no sentido em que cada vez mais recorremos a ferramentas para tornar a nossa vida um pouco mais fácil, adaptando as novas tecnologias a esse fim, e não o contrário (que era comum até há pouco tempo).
A par de todos estes desafios, também o Brexit é agora uma realidade. Qual tem sido o impacto sentido pelas empresas transitárias?
Na APAT tivemos a preocupação de manter os nossos associados bem informados sobre o BREXIT, sobretudo nos procedimentos aduaneiros, mas também sobre os impactos na circulação rodoviária, marítima e aérea. Atendendo aos condicionalismos e incertezas que o BREXIT despoletou, os transitários deram uma excelente resposta, permitindo, mais uma vez passar confiança à cadeia logística. É inegável que houve constrangimentos operacionais provocados por erros de quem conduziu o processo, que poderiam ter sido evitados, mas de uma forma ou de outra o próprio mercado assimilou e continua a assimilar as alterações, e vai ajustando as suas necessidades logísticas. Os transitários têm um historial de sucesso em mudanças deste género, e isso reflete-se na forma como conseguimos proporcionar estabilidade aos nossos clientes.
Sector tem falta de quadros com conhecimentos especializados
Os recursos humanos são essenciais ao bom funcionamento das empresas. Como vê as competências existentes no sector?
Nada é mais importante que as nossas pessoas. É especialmente relevante a consciencialização sobre o novo local de trabalho multimodal que implica, gestão de equipas virtualmente e pessoalmente. Nesse sentido, a APAT está a trabalhar para que os nossos transitários consigam criar capacidades ajustadas a uma realidade diferente, empolgante e muito desafiante que decorre deste deslocamento colectivo que mudou o como e o onde experimentamos as coisas. Queremos que as pessoas que trabalham nas nossas empresas tenham disponíveis ferramentas que as mantenham actualizadas e motivadas para ultrapassar os desafios.
O sector tem carência de quadros com conhecimentos especializados sobre áreas tão diversas como as operações nos vários modos de transporte, operações aduaneiras e especialistas em logística internacional. A APAT tem desenvolvido várias parcerias com entidades formadoras e contribuído para a dinamização de cursos de nível superior para fazer face a essas mesmas necessidades. Temos o exemplo do Pós-Graduação em Direito dos Transportes de Mercadorias resultante de uma parceria entre a Universidade Portucalense e a APAT. E uma nova iniciativa em conjunto com o Instituto Politécnico da Guarda a iniciar em Novembro deste ano com um Pós-Graduação em Logística para profissionais e executivos.
A APAT organiza nos dias 29 e 30 de Outubro o seu 18.º Congresso, o que é que os participantes podem esperar deste evento?
Num primeiro debate, começaremos por abordar a resiliência da cadeia logística fomentando a discussão sobre os impactos da COVID, a escalada de preços no transporte, escassez de contentores, concorrência e sustentabilidade. Prosseguimos para uma conversa norteada pelo tema da relação entre logística e tecnologia, digitalização, informatização, crimes cibernéticos e e-Commerce. E finalizamos com a relação das Pessoas com a “Nova Logística”, com temas como o teletrabalho, motivação, formação, adaptação à nova realidade, gestão de equipas e novos negócios.
Sempre foi um objectivo da APAT possibilitar que todas as empresas associadas estejam informadas e actualizadas sobre matérias de todos os quadrantes do saber. Queremos dotar os gestores dos Transitários de conhecimento que lhes permitam tomar decisões ou terem um tempo de reacção rápido devidamente suportado, para minimizar impactos na própria empresa. Por isso considero que o nosso congresso é o evento onde todos devem estar.
O artigo foi publicado na edição nº181 da revista Logística Moderna