E se deixássemos os trabalhadores desenhar as suas funções?

A inteligência artificial é o elefante na sala de que todos falam nas empresas, mas que poucos conseguem verdadeiramente discernir. Trabalhadores e dirigentes encaram-na com um misto de expectativa e receio: expectativa quanto às possibilidades que a sua aplicação promete desbloquear; receio de estarem a abrir uma Caixa de Pandora e desencadear uma evolução incontrolável. Competição cada vez mais feroz, instabilidade geopolítica, tensões comerciais permanentes, volatilidade dos mercados, crise ambiental e outras tecnologias – tudo isso continua a figurar na lista das preocupações, mas num plano secundário, subordinado à especulação sobre o impacto que a inteligência artificial poderá ter, também aí.

A inteligência artificial está, de facto, a revolucionar a forma como trabalhamos e nos organizamos. A sua capacidade para automatizar tarefas rotineiras, reorganizar fluxos de informação e gerar apoio à decisão oferece a possibilidade de redesenhar funções, enriquecer o seu conteúdo e alterar o respectivo perfil de responsabilidade e autonomia. Estas transformações repercutem-se, naturalmente, nas funções de liderança que enquadram e orientam esse trabalho.

Tudo isto são, na verdade, boas notícias para os trabalhadores. Em vez de empobrecer ou mecanizar as suas funções, a inteligência artificial abre caminho para um papel mais rico, mais autónomo e mais valorizado. Ao redistribuir tarefas e reconfigurar responsabilidades, a tecnologia pode ampliar o espaço para a iniciativa individual e reforçar o sentido de contributo pessoal – atributos que, como tenho vindo a sublinhar ao longo destes artigos, distinguem as organizações verdadeiramente ágeis e adaptáveis, capazes de enfrentar os desafios destes tempos conturbados.

A inteligência artificial generativa oferece múltiplas possibilidades para esse fim, a vários níveis.

Numa empresa de serviços financeiros, por exemplo, a inteligência artificial foi utilizada para selecionar e automatizar 68 atividades em quatro funções ligadas ao atendimento ao cliente, permitindo simultaneamente redistribuir 17 tarefas mais analíticas e criativas para colaboradores juniores, que passaram a executá-las com o apoio de ferramentas de IA generativa. Note-se, contudo, que neste exemplo é a própria organização que planeia e conduz a operação, numa lógica top-down. Sem pôr em causa a pertinência deste tipo de iniciativas, trata-se de um nível que não envolve necessariamente a iniciativa nem o envolvimento direto dos trabalhadores no redesenho das suas funções.

Já passa a ser esse o caso quando é o próprio trabalhador a usar ferramentas de IA generativa — como assistentes digitais, copilotos ou sistemas conversacionais — para analisar os seus próprios fluxos de trabalho, detetar padrões, avaliar prioridades e identificar oportunidades de reconfiguração. Imaginemos por exemplo que um responsável de operações recorre a uma dessas ferramentas para analisar o seu histórico de correio eletrónico e a sua agenda de reuniões. A IA generativa            identifica um conjunto de tarefas rotineiras — respostas repetitivas a pedidos, atualizações de estado, reuniões informativas redundantes — e sugere formas concretas de as automatizar ou simplificar. Com base nestas recomendações, o trabalhador reorganiza a sua função, delegando ou automatizando tarefas de baixo valor acrescentado e concentrando-se em atividades estratégicas, como a resolução de problemas operacionais complexos e a optimização de processos críticos.

Num terceiro nível, a utilização da IA generativa vai além do diagnóstico e acede ao domínio da execução transformada. O trabalhador não só identifica novas formas de exercer a sua função, como passa a desempenhá-la de modo diferente, com o apoio ativo da tecnologia. Tal como no exemplo anterior, as tarefas repetitivas são automatizadas com ferramentas acessíveis, e também as atividades de maior valor passam a ser apoiadas por sistemas inteligentes que facilitam a análise de dados, a elaboração de propostas, a tomada de decisão. Este é o limiar em que a função redesenhada se materializa num novo perfil de desempenho — mais eficaz, mais criativo e mais propício à realização do potencial da pessoa que o exerce.

Estes exemplos revelam uma mudança de paradigma na forma como concebemos o trabalho: de uma lógica de execução passiva para um incentivo à construção ativa, em que a iniciativa individual e a autonomia ocupam um lugar central não só no que respeita à execução das atividades mas à própria seleção e configuração dessas atividades e ao alargamento do seu raio de ação. E a inteligência artificial, longe de substituir esse protagonismo do trabalhador, tem vindo a reforçá-lo. Mas para que esta transformação seja possível — e se torne efetivamente estruturante — é indispensável um novo enquadramento organizacional, que reconheça esse potencial e crie condições para o desenvolver.

As implicações para a liderança são particularmente exigentes. O verdadeiro risco não está na inteligência artificial em si, mas numa cultura de liderança que a receia sem compreender o seu alcance transformador e conduz muitas vezes a respostas defensivas: reforço do controlo, centralização de decisões, adiamento da mudança. Ora, é precisamente o contrário que se impõe. Liderar eficazmente neste novo cenário implica confiar mais, controlar menos e criar as condições para que as equipas participem ativamente na reinvenção do seu trabalho e utilizem a tecnologia como alavanca para o fazer.

Neste contexto, o que aconteceria se deixássemos os trabalhadores desenhar as suas funções? Teríamos certamente equipas mais motivadas, mais adaptáveis e mais alinhadas com os objetivos da organização. A verdadeira transformação não reside apenas nas ferramentas que usamos, mas na forma como escolhemos liderar.

João Paulo Feijoo

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