À medida que a terceira vaga da pandemia assola a Europa, o verniz parece ter “estalado” entre a Comissão Europeia, mandatada pelos vários estados Europeus para gerir o fornecimento das vacinas, e as farmacêuticas Pfizer/BioNTech e a AstraZeneca/Universidade de Oxford. A razão prende-se com o atraso na disponibilidade das doses destinadas à União Europeia.
Stella Kyriakides, a Comissária para a Saúde e Segurança Alimentar, afirmou que “os novos prazos não são aceitáveis para a UE. A UE pré-financiou o desenvolvimento da vacina e a sua produção e quer ter resultados.” E continua “quer saber exactamente que doses foram produzidas pela AstraZeneca até ao momento e a quem foram entregues.” Segundo a responsável, “as respostas da empresa até agora não foram satisfatórias.”
Embora a UE também se queixe com problemas com a Pfizer, a grande irritação parece ser com a AstraZeneca. Na realidade parece estranho a forma como a UE, no meio de uma pandemia cuja gravidade já se adivinhava há muito, parece ter negligenciado as supply chains de produção da vacina. Na realidade na primeira vaga houve problemas com a Índia e a Turquia, com ambos os países a reterem dispositivos médicos dirigidos a países da UE essenciais no combate ao vírus e protecção de pessoal médico.
Mas vejamos como funciona neste momento a supply chain das vacinas na Europa e mais especificamente a da AstraZeneca.
Há quatro etapas principais no fabrico da vacina:
1 – A produção do fluido da vacina que é produzido em três locais distintos: Oxford Biomédica no Oxfordshire (RU), Cobra Biologics no Staffordshire (RU) e na fábrica de Halix nos Países Baixos. O processo envolve a utilização de células retiradas de rins humanos que funcionam como “mini fábricas” para produzirem a vacina rapidamente. As proteínas da Covid-19 são transferidas para as células e combinadas com uma solução de crescimento. Isto cria uma cultura de células que é colocada em bio reactores nestas fábricas e permitem que as células se repliquem. Quando esta mistura atinge a concentração necessária de Covid-19 o líquido é recolhido, filtrado e purificado e colocado em recipientes para expedição.
2 – De seguida, o fluido é levado ou para uma fábrica em Wrexham, no norte de Gales ou para outra na Alemanha. Nestas fábricas este é transferido para frascos individuais numa linha de produção. Na fábrica de Wrexham trabalham cerca de 420 pessoas e tem uma capacidade para produzir cerca de 300 milhões de doses por ano, mas de momento está a produzir apenas 150.000 por dia.
3 – Segue-se a fase de testes de segurança por que todos os lotes têm de passar, no caso do RU isso é feito no laboratório do National Institute of Biological Standards, em South Mimms, no Hertfordshire.
4 – Tendo passado nos testes, a vacina é carregada em camiões refrigerados especiais e transportada para seis hospitais em vários pontos do Reino Unido, onde são utilizadas para vacinar a população.
Ora qual parece ser o problema da UE, é que enquanto tudo parece correr bem no RU, as farmacêuticas têm tido e continuam a anunciar atrasos nos fornecimentos à UE. Tanto a UE como alguns governos europeus suspeitam que lotes destinados à UE tenham ido parar ao Reino Unido. Na realidade segundo se pode inferir das declarações de vários responsáveis europeus aparentemente a AstraZeneca, já deveria estar a constituir um stock de vacinas para a UE, mesmo antes desta estar aprovada pelas autoridades europeias.
Esta questão já levou Boris Johnson a reagir de forma dura às declarações feitas por Stella Kyriakides e Ursula von der Leyen, “esperamos que os nossos amigos da UE honrem todos os contratos”. O governo britânico já declarou que a supply chain destas vacinas na fase inicial têm “um pequeno problema”, que é o facto de a mesma ser produzida (AstraZeneca) na Holanda e na Alemanha e a da Pfizer na Bélgica, “problema que esperam ter resolvido dentro de pouco tempo.”
Ou seja, há quem se preocupe com a supply chain. É curioso que a forma de funcionamento da supply chain de distribuição da vacina no RU é conhecida pelo menos em relação à da Pfizer, a mais complicada:
1 – As doses destinadas ao Reino Unido são fabricadas na Bélgica;
2 – As caixas de transporte próprias da vacina podem acomodar entre 1.000 a 5.000 doses;
3 – Caixas pré-embaladas são transportadas para os centros de vacinação;
4 – Sistemas de GPS colocados nas caixas e sensores térmicos garantem que a temperatura de segurança adequada é mantida;
5 – Nos centros de vacinação as vacinas podem ser armazenadas nas caixas em que foram entregues ou frigoríficos normais;
6 – Neste momento há 1.500 centros de imunização no Reino Unido preparados para receber os frascos com a vacina;
7 – Cada frasco contém cinco doses depois de ter sido diluído;
8 – Os frascos diluídos têm de ser usados num prazo de seis horas (solução salina);
9 – As vacinas são administradas à temperatura ambiente;
10 – Podem ser armazenadas na caixa de transporte própria e frigorífico normal nos centros de imunização durante 20 dias (até 15 dias na caixa com adição de gelo a cada cinco dias – caixa pode ser aberta duas vezes por dia – depois mais cinco dias num frigorífico normal – entre 2º a 8º C;
11 – Transporte de frascos descongelados pode ser realizado a 2º-8ºC até 6 horas;
12 – Armazenagem a menos 70ºC só é necessária para períodos longos (meses).
Por cá não deve ser muito diferente, só que na realidade não é de conhecimento geral. Mas a UE parece ter acordado e percebido que as supply chains podem ser impactadas por problemas não logísticos, e assim vai ser criado uma obrigação de comunicação prévia de exportação de vacinas para a Covid-19 para fora do espaço comunitário, que abrange todos os laboratórios.
A União Europeia, já deixou claro que não se trata de desviar lotes destinados a países terceiros, mas apenas de se passar a ter visibilidade e transparência na Supply Chain. Preocupação que “parece normal, embora tardia, “pois de facto parece que a AstraZeneca, só irá entregar, até finais de Março, 31 milhões de doses das 80 milhões que estavam prometidas à UE.
Resta saber se a União Europeia efectivamente “means business” como afirmou. Até lá a realidade é que no Reino Unido a campanha de vacinação está a decorrer de acordo com o planeado, com a vacinação das 15 milhões de pessoas consideradas mais vulneráveis, a ser realizada até meados do próximo mês.