Pode uma empresa funcionar sem hierarquia?

Em 2015, a Zappos – uma empresa de venda de calçado online com sede na California[1] muito celebrada pela sua cultura de excelência no serviço e pelas suas práticas pouco convencionais de gestão das pessoas – decidiu acelerar o processo de implantação de uma holacracia – uma estrutura organizacional desprovida de hierarquia e na qual todos os colaboradores têm autonomia e autoridade para tomar as decisões que consideram mais apropriadas para satisfazer o cliente. Esta iniciativa teve como consequência imediata a saída de cerca de 18% da força de trabalho da empresa[2].

O que é que terá corrido mal?

No ambiente cada vez mais volátil e rodeado de incertezas em que as organizações têm de operar, parece fazer todo o sentido atribuir maior autoridade de decisão aos colaboradores que têm de lidar diretamente com os problemas – ainda para mais numa empresa como a Zappos, que quer destacar-se pela capacidade de encantar o cliente. Este “empoderamento” é inevitável perante as mudanças na natureza do trabalho que caraterizam as organizações pós-industriais, em que as atividades mais simples e repetitivas vão sendo gradualmente automatizadas, sobrando para os trabalhadores humanos as questões mais complexas, frequentemente inéditas, que exigem uma elevada capacidade de discernimento.

Este novo contexto não é compatível com um sistema de “comando e controlo” fortemente hierarquizado, onde a comunicação é afunilada e a autoridade concentrada no topo. Numa organização convencional, “hierarquia” é sinónimo de “poder”. Reduzir o poder da hierarquia significa limitar a sua capacidade de interferir na atividade dos “subordinados” – o que é positivo quando estão em causa situações em que estes estão em melhores condições de intervir. Nada como suprimir camadas da hierarquia para pôr mais indivíduos a reportar ao mesmo chefe, dificultar-lhe a microgestão e obrigá-lo a delegar mais autoridade.

Nesta perspetiva, a holacracia – um sistema de equipas de pares trabalhando sobre projetos conexos, ligados por uma estrutura em rede para facilitar a circulação da informação por todos – não parece ser uma má ideia. Onde está então a falha? Numa noção redutora de qual deve ser o papel da hierarquia.

O papel das chefias vai muito além do “comando e controle” ou foco na tarefa. Inclui também o foco na relação – os fatores da esfera afetiva que influenciam poderosamente o comportamento de indivíduos e de equipas.

A importância crescente do foco na relação em detrimento do foco na tarefa é uma caraterística marcante da liderança nas organizações pó-industriais. O líder – e não apenas o “chefe” no sentido redutor do termo – é aquele que encoraja, que desafia, que interpela, que apoia, que puxa pelos pontos fortes dos seus colaboradores; que os inspira com uma visão ambiciosa em vez dar instruções a conta-gotas mantendo-os na ignorância do destino final.

Os estudos empíricos mostram que o comprometimento é mais elevado com chefes que dedicam maior atenção à relação, reduz-se com chefes que se preocupam mais com a tarefa, e cai praticamente para zero quando os chefes, embora presentes, ignoram os seus colaboradores.

É importante e louvável impedir que chefes demasiado focalizados na tarefa atrapalhem os colaboradores, mas eliminar radicalmente a hierarquia remete para aquele terceiro caso: significa subtrair àqueles últimos um ponto de referência e uma fonte de apoio motivacional indispensáveis para o seu comprometimento.

O que é preciso é suprimir uma coisa mas preservar a outra.

 

João Paulo Feijoo

Consultor, docente e investigador

 

[1] A Zappos foi adquirida pela Amazon em 2009; esta última, considerando a especificidade da cultura da Zappos e os excelentes resultados alcançados, decidiu manter-lhe a autonomia de gestão.
[2] Uma das práticas de gestão de pessoas menos ortodoxas da Zappos é o “bónus de saída” – uma quantia de várias centenas de dólares paga aos colaboradores que não se adaptam à cultura da empresa para os incentivar a pedir a demissão. Contudo, estas saídas ocorrem na sua esmagadora maioria no final das 4 semanas iniciais de formação, e o seu nível é muito inferior aos 18% apontados.

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