A Logística Moderna tomou o pulso a fornecedores, distribuidores e analistas para medir o impacto, na supply chain, da vaga de alianças em centrais de compra. Fornecedores temem o poder negocial destes gigantescos (e, tendencialmente, poucos) compradores. Retalhistas chamam-lhes ferramentas de negócio, com benefícios para aliados e consumidores. Analistas dizem que não é recuo, é devir, e resposta natural a hard discounters e plataformas eletrónicas; defendendo que 30 anos de logística moderna permitem aos fornecedores saber gerir o risco destes novos modelos de compras. Uma coisa parece certa: o sector do retalho está a mudar.
O dia em que a Amazon entrou no negócio tradicional do retalho, com aquisição da Whole Foods, bem podia ser assinalado, no calendário, como a data em que uma nova era começou. Até junho de 2017 o processo havia sido sempre o inverso: o retalho tradicional criava soluções online para complementar o seu negócio, estendê-lo, acompanhando novos tempos, novos clientes. A Amazon cortou com o hábito, fez o digital entrar no físico. Disruptivo, este passo lança aos players do sector, um desafio adicional: não basta já concorrer com os do costume, urge enfrentar uma ameaça nova, e de monta.
O maior operador digital introduz um fenómeno fora dos planos dos operadores clássicos, segue-se uma onda de casamentos. Este verão, várias insígnias juntaram forças para comprar melhor. Anunciada em julho, a aliança estratégica entre Carrefour (a primeira cadeia em França) e a Tesco (a segunda no Reino Unido) vigorará por três anos durante os quais a dupla vai gerir “conjuntamente, as suas relações com fornecedores“- lê-se no comunicado das multinacionais, que operam em dezenas de países. O pacto visa aumentar poder negocial, diminuir custos vários e melhorar preços junto ao consumidor. Em síntese: garantir maior competitividade às aliadas. Móbil idêntico na materialização da Horizon, outra central de compras desta vaga recente, também ela anunciada sob o sol do último verão. Uniram-se quatro insígnias: Auchan Retail, Casino Group, Metro e Schiever Group.
Negando tratar-se de uma “mera tendência de mercado”, fonte oficial da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), numa declaração por escrito, afirma que as centrais de compras “devem ser vistas como ferramentas de negócio”. Cabendo “a cada operador definir se, e em que período, esta ferramenta se enquadra na sua estratégia, naturalmente, mediante a avaliação da sua eficácia em termos de criação de competitividade e benefícios mútuos e do impacto positivo junto do consumidor”.
Concorrência inaudita no retalho
Este movimento de alianças é uma resposta natural face aos vários concorrentes, em suas diferentes roupagens. “Os incumbentes do sector enfrentam, hoje, maior concorrência de empresas com posicionamentos distintos – sejam hard discounters ou plataformas eletrónicas – que as leva a encarar de forma mais favorável a colaboração com os seus concorrentes tradicionais”, comenta Pedro Miguel Silva, Associate Partner Consulting da Deloitte. Não há volta a dar: “O retalho alimentar é um sector de margens reduzidas e grande intensidade concorrencial, onde qualquer ganho que possa ser obtido na negociação com fornecedores tem um impacto relevante nos resultados”, conclui o consultor da área de Retail & Consumer Products.
O histórico demonstra, no entanto, que o sucesso destas centrais de compra não é garantido. O que é crítico para o resultado? “A intensidade concorrencial entre os associados, em cobertura geográfica e posicionamento de mercado, e o papel que as categorias incluídas no acordo têm na estratégia comercial de cada empresa”, elenca o associate partner da Deloitte. As singularidades dos associados também poderão impactar: ”Tenho algumas dúvidas, por exemplo, que um retalhista cuja marca própria tenha um peso elevado nas vendas consiga partilhar a respectiva gestão com um concorrente”, remata o especialista.
Afunilamento do mercado
O acento tónico destas uniões “é a negociação com os fornecedores, o resto é blá, blá, blá”, onomatopeia para sumarizar a opinião do porta-voz da Associação Portuguesa de Empresas de Produtos de Marca. Para Pedro Pimentel resulta claro que “90 e tal por cento das vezes a busca de competitividade passa pelo que vão buscar junto dos fornecedores na negociação”. Isto “implica uma degradação das condições de venda para quem está a pôr o produto do mercado”, conclui o director-geral da Centromarca. Razão suficiente para esta onda de anúncios, de gestão conjunta dos processos de negociação, preocupar “muitíssimo” os fornecedores. Se hoje “os contratos já são leoninos” como será ante estes poderosos compradores?
“Uma coisa é certa, estas centrais nunca representam mais vendas”, diz Pedro Pimentel. Temendo pela estrutura económica de algumas empresas exemplifica: “Se a Tesco compra água a quatro fornecedores e a Carrefour a outros quatro, e se não são os mesmos, quando se juntam reduzem estes oito a metade e alguns terão de sair do mercado porque não têm onde colocar os seus produtos”. O perigo recai, sobretudo, nas segundas linhas: “Em Portugal ninguém abdica de uma Água do Luso, mas uma marca menos conceituada perderá o espaço no mercado”.
A visão de Pedro Miguel Silva, da Deloitte, não o desmente: “Se olharmos para a UE como um único mercado, os níveis de concentração do retalho alimentar são, ainda, bastante baixos. Não quer isso dizer que os retalhistas não possam acumular poder de mercado a nível mais local, em particular junto de produtores mais pequenos e com um alcance comercial e logístico mais reduzido”.
O líder da Centromarca aponta o fatal “afunilamento do mercado”. Juntas, Carrefour e Tesco formaram um só comprador. A Horizon aglutinou quatro insígnias. “Num mercado já com poucos clientes – em que menos de 100 cadeias representam quase 90% do volume de compras na Europa -, o fornecedor tem cada vez menos alternativas”, objectiva Pedro Pimentel.
Nivelamento das condições comerciais
É um constrangimento destes casamentos para comprar: “Quando a empresa A negoceia com um distribuidor em concreto, dá-lhe uma série de informação confidencial. Esse fornecedor tem dois contratos diferentes com duas cadeias distintas, mas a mesma cadeia tem contratos semelhantes com os fornecedores”, relata director-geral da Centromarca. Quando as cadeias se juntam “ficam com o melhor dos dois mundos. Se o contrato da parceira tem 2% para a logística – e ela tem 1% – então, também vai exigir 2%.”
Pedro Miguel Silva corrobora que a constituição destas alianças “limita a capacidade dos fornecedores definirem a sua estratégia comercial de forma segmentada, diferenciando as condições comerciais entre clientes.” Na criação da central, “a tendência é para nivelar as condições comerciais de cada fornecedor pelo acordo mais favorável, previamente obtido por cada um dos seus associados, o que representa uma perda de receita imediata para o fornecedor.” Dito isto, o consultor crê que: “Os fornecedores portugueses já convivem com a distribuição moderna há mais de 30 anos e estão, hoje, bem capacitados para gerir o risco associado a estes novos modelos de compras.” Pedro Pimentel lembra, apesar disso, que a equiparação de condições pela nivelação pode significar “agravamentos brutais de contratos”, alertando, ademais, que: “A partilha de informação confidencial não é legal”.
Na declaração por escrito, fonte oficial da APED sublinha que estas “alianças estratégicas são enquadradas nos parâmetros regulatórios e autorregulatórios referentes às relações entre intervenientes na cadeia de valor e com garantia de respeito das regras da livre concorrência entre operadores”.
Dados beneficiam agentes da supply chain
Se há uma década havia “uma discrepância completa de poder negocial” entre distribuidores e fornecedores, hoje, “fruto, sobretudo, das leis nacionais de alguns países, a situação é menos gravosa”, afirma o porta-voz da Centromarca para quem estes novos modelos de compras penalizarão o equilíbrio, entretanto, conquistado. “Basta pensar que a maior empresa fornecedora em Portugal vale menos de 1% das compras de um retalhista, mas para essa empresa aquele comprador pesa 30% nas vendas”.
O associate partner, Retail & Consumer Products, da Deloitte, diz que a relação entre os produtores e a distribuição “não parece seguir uma progressão linear, antes variando conforme o contexto económico, competitivo e tecnológico.” Lembra o consultor que são, paralelamente, “parceiros e concorrentes”. Nalgumas áreas “têm os incentivos alinhados e desenvolveram forte colaboração” – como no desenvolvimento e lançamento de novos produtos, na recolha e exploração de informação de consumidores ou no planeamento e gestão da logística de distribuição -, noutras “concorrem por presença na mente do consumidor, por espaço na prateleira ou por margem da cadeia de valor.”
Pedro Miguel Silva não tem dúvidas de que ambos podem tirar proveitos da supply chain, se continuarem a “identificar áreas de actuação em que ambos beneficiem”. E materializa: como muitos outros, “o retalho é um sector cada vez mais data-centric, em que o sucesso tem uma correlação cada vez mais forte com a capacidade dos seus agentes em recolher e trabalhar informação de clientes, da qual todos os agentes da supply chain podem beneficiar.”
Com a criação destas centrais de compras “os retalhistas presentes na aliança continuarão a competir entre si”, considera o responsável da Deloitte. Já o consumidor, não deverá “sentir qualquer impacto ao nível da variedade de escolha e do preço de venda”.
Artigo completo na edição nº 167 da revista Logística Moderna