2022: O ANO DOS FAQUIRES

Estive há dias envolvido numa conversa em que o tema de fundo se centrou nas causas e impactos da actual crise das cadeias de abastecimento e, muito especialmente, nesse quase exercício de adivinhação sobre se a mesma é ultrapassável em poucos meses ou se se se está a converter de conjuntural em estrutural.
Alguém referia que, por exemplo, as grandes consultoras internacionais estavam a deixar de construir planos de negócio a mais de três anos (e não de cinco como faziam até aqui), porque consideram que projecções mais longas são, nesta altura, totalmente fantasiosas. Houve quem referenciasse a forma como as políticas monetárias dos bancos centrais podiam, ou não, ser um retardante ou um acelerante deste fenómeno e discutiu-se amplamente se a velhinha lei da oferta e da procura continua a ter incentivos para ‘funcionar’ e se há um esforço conjugado, a nível internacional, para o seu rápido reajustamento.
Houve, para além disso, um amplo consenso em relação à dificuldade de muitas das economias mundiais readaptarem-se ao convívio com a inflação, realidade que não enfrentavam desde a década da oitenta e de que ainda há poucos anos as sinetas de alarme soavam relativamente ao efeito paralisante da estagflação e a uma realidade de deflação a atacar muitos mercados, com o sinal mais visível estabelecido pela existência desse fenómeno, estranho para muitos, das taxas de juro negativas.
Mas, independentemente de todos estes considerandos, a vaga inflacionista está – definitivamente – a inundar a economia à escala global, é incontornável nas decisões de gestão de todas as entidades e as empresas do sector do grande consumo a operar em Portugal não constituem, obviamente, excepção a essa regra.
Há semanas, a NielsenIQ publicou um relevante trabalho de fundo intitulado “Is Inflation here to stay?”, no qual pretendeu demonstrar que os drivers desta crise são muito complexos, simultâneos e imbricados entre si e que os seus impactos tenderão a sentir-se não apenas no curto prazo, mas também e muito especialmente a médio e a longo prazo.
Identificou significativos aumentos de custos seja a nível de matérias-primas e de materiais de embalagem, seja a nível de logística e transportes, os sensíveis aumentos dos custos laborais, aumentos estes que devem ser conjugados com incrementos súbitos dos níveis de encomenda em muitos produtos e em muitos mercados.
Mas adicionou outros factores que condicionam a realidade actual e que funcionam quase como uma forte corrente que se sente abaixo da superfície, destacando a sucessão de eventos climáticos extremos, a reversão e a interrupção de fluxos migratórios, a acrescida complexidade dos movimentos transfronteiriços, de pessoas mas também, e muito, de cargas, os estrangulamentos portuários, nos transportes rodoviários e ao longo de toda a cadeia logística, uma maior pressão sobre processos intensivos em trabalho e as dificuldades a nível de contratação de mão-de-obra mais indiferenciada, o crescimento da chamada fiscalidade ambiental e regulatória (e multiplicação de exigências fiscais e parafiscais), a que se adiciona, no caso dos mercados FMCG, a pressão acrescida introduzida pelo comércio online e pelos fenómenos do meal delivery e do q-commerce.
E concluiu que os drivers mais relevantes desta crise são, essencialmente, de médio e longo prazo, com a crise Covid a ser provavelmente aquele de impacto mais circunscrito no tempo (embora, até mesmo aqui, a sucessão de variantes e vagas esteja a gerar uma forte dificuldade em antecipar o quando), enquanto temas como os da polarização financeira, das alterações climáticas, das alterações de padrões de consumo terão um efeito muito mais alargado no tempo, sendo que complexidade e incerteza dos cenários é ainda agravada pela escalada de conflitos regionais (Bielorússia/Polónia, Rússia/Ucrânia, Paquistão/Índia, Colômbia/Venezuela ou entre a Argélia e Marrocos) e pelos seus múltiplos efeitos geopolíticos e económicos.
Na sua habitual crónica de fim-de-semana no Diário de Notícias, o presidente da CIP, António Saraiva, escrevia há poucas semanas que estamos a enfrentar um mundo cada vez mais perigoso e imprevisível.
E quando pensamos que esta crise surge imediatamente a seguir (e em larga medida por causa) da pandemia e que as suas sequelas são muito fortes a nível social e económico, afectando muitas famílias, em especial nos segmentos com rendimentos mais baixos, percebemos que a inflação, especialmente quando afecta os produtos mais básicos, é a austeridade dos mais pobres e que ela terá impactos sérios na sua capacidade de aquisição e na satisfação das suas necessidades mais prementes.
Sentimos, nos contactos diários, que as nossas empresas não poderão absorver este fortíssimo agravamento dos seus custos, mas sentimos também que as empresas reconhecem as dificuldades dos consumidores e que agravamentos sensíveis dos preços terão sempre um reflexo muito negativo no consumo. E, como diz a sabedoria popular, no meio é que está a virtude.
Em adição, deve recordar-se a fortíssima presença e profundidade promocional no mercado FMCG em Portugal. Em muitas categorias de produtos, as vendas em promoção representam mais de 75% das vendas totais e não parece muito assertivo, nem compreensível para o consumidor, que se introduzam fortes aumentos nos preços dos produtos, para de seguida manter acções promocionais constantes e com percentagens de desconto muito elevadas.
Por tudo isto, é muito importante construir nas empresas, mas também no retalho, um cuidado equilíbrio que salvaguarde a sobrevivência financeira do tecido empresarial, mas que – em simultâneo – coloque o foco nas preocupações e dificuldades dos consumidores, um equilíbrio que exige muito bom senso e que é muito complexo, tendo que incontornavelmente esticar-se a corda, mas tentando a todo o custo que ela não parta.
O presidente da Centromarca, Nuno Fernandes Thomaz, dizia há dias que os próximos dois trimestres serão, do ponto de vista económico, provavelmente os mais desafiantes e complexos dos últimos trinta anos.
Partilho dessa visão e depois de um 2020 hipocondríaco e de um 2021 bipolar, antecipo um 2022 em que – quais faquires – caminharemos sobre brasas.
E neste cenário de incerteza teremos que ser, em cada uma das nossas casas, muito criteriosos e cuidadosos na escolha do ‘calçado’ para enfrentar essa difícil caminhada.

 

Pedro Pimentel
Director Geral da Centromarca

Written by