As primeiras semanas da pandemia foram assustadoras em termos de segurança alimentar. A compra em massa do pânico causou o esvaziamento das prateleiras dos supermercados em todo o mundo, algo nunca visto na Europa para muitos de nós. Longas filas e prateleiras vazias geraram o medo nos consumidores, retalhistas e fornecedores, que questionaram a capacidade da cadeia alimentar em suportar o aumento repentino na procura e a mudança nos hábitos de compra. A indisponibilidade de produtos básicos como massas, carnes e papel higiénico colocou dúvidas em muitos.
Felizmente, as cadeias de abastecimento de alimentos têm sido notavelmente resilientes. Após essas tensões específicas, os supermercados foram reabastecidos e as cadeias logísticas responderam. Os retalhistas mudaram o seu horário de funcionamento para dar suporte aos clientes mais vulneráveis e definir limites de compra para produtos específicos. Os processadores de alimentos aumentaram as horas nas fábricas e contrataram funcionários extra. A mentalidade que prevaleceu entre os atores da rede responsáveis por fornecer alimentos aos clientes no auge da crise foi a de responsabilidade social e reconhecimento do bem maior.
Os fornecedores também perceberam a importância da confiança do consumidor. No estudo que a Lantern fez sobre o impacto do Covid-19 no setor alimentar, patrocinado pela EIT Food, entrevistamos um amplo grupo de expertos do sul da Europa. Numa destas entrevistas um destes especialistas falou sobre como é essencial para as marcas e a narrativa das empresas terem demonstrado resiliência e provido para o seu cliente durante os momentos mais difíceis da pandemia.
Algumas previsões sobre como o COVID-19 afetaria as nossas cadeias de abastecimento de alimentos provaram ser falsas. Uma delas é que os fornecedores locais serão priorizados exclusivamente em relação ao sourcing global. Infelizmente, muitos dos produtos que os consumidores exigem só podem ser cultivados em regiões específicas. 75% dos abacaxis consumidos na Europa, por exemplo, são cultivados na Costa Rica.
Em vez disso, as empresas optaram por trabalhar com um grupo mais amplo de fornecedores, tanto locais quanto globais, a fim de distribuir o risco.
Regulamentações mais pesadas da indústria de alimentos também se mostraram improváveis, de acordo com os especialistas entrevistados. Um deles disse à Lantern que a indústria simplesmente não tem mais espaço para regulamentação, especialmente considerando a nova Estratégia Farm to Fork da UE, que exigirá grandes mudanças de todos os participantes, a fim de acelerar a transição para um sistema alimentar sustentável.
Ao mesmo tempo, assistimos a muitas mais mudanças no comportamento do consumidor que também vão ter um grande impacto no setor e nomeadamente na supply chain. Por exemplo, a maioria de nós experimentou o trabalho remoto pela primeira vez, embora alguns o tenham feito antes esporadicamente. Agora, devido à situação em que vivemos, palavras como Zoom, Slack, Teams ou Meet, tornaram-se parte de nossa linguagem quotidiana. Em média, 35% dos europeus trabalharam em casa durante a pandemia, de acordo com o Eurofund, e parece que essa tendência veio para ficar. Mais e mais empresas estão a adaptar as suas políticas para incluir o trabalho remoto como parte da sua cultura corporativa.
Este movimento, juntamente com os períodos de confinamento, tem impactado o crescimento do e-commerce e do delivery. Cada vez mais pessoas têm experimentado fazer a sua compra de alimentos online o que acelerou o processo de digitalização em mais de 5 anos em muitos países, e Portugal não é uma exceção.
Vamos ver como este canal vai continuar a crescer após a pandemia, e isso vai depender da forma como as marcas encaram esta oportunidade. Não podemos pensar que a transposição da oferta atual para o mundo web é suficiente. Temos que repensar a nossa oferta e também como adaptamos o nosso route to market.
Neste aspeto, várias marcas desenvolveram o seu próprio canal de venda online, fora dos canais habituais com os retalhistas. Até agora, este era um tema tabu dentro das companhias de Grande Consumo, ninguém queria competir com os retalhistas. Mas a pandemia tornou este medo numa oportunidade. A dificuldade que muitas marcas tiveram em chegar aos seus clientes, e também a dificuldade que os retalhistas tiveram em dar resposta aos clientes, foram provas de que os dois canais não são concorrentes, mas sim parceiros que se complementam.
Os desafios que as marcas e os responsáveis de logística enfrentam agora é como fazer esta operação relevante para os consumidores e ao mesmo tempo rentável e também eficiente. Não é uma tarefa fácil. Pela parte da oferta, o mais importante é construir uma proposta diferencial para o consumidor. Temos que pensar que além de oferecer aos clientes aquilo que já podem comprar no supermercado, podem também conhecer uma oferta diferente.
Nesta parte o mais interessante é pensar em novas oportunidades de consumo, e com elas novas experiências em casa para os nossos produtos. A pandemia fez crescer os momentos de refeições em casa, como os pequenos-almoços. Nestes tempos estamos a fazer muitos mais pequenos-almoços em casa e eles tem uma duração também mais longa.
Oferecer um catálogo mais amplo daquele que podemos ter no supermercado, por exemplo, é uma oportunidade interessante para desenvolver estas novas ocasiões de consumo. Mais isso tem, logicamente, implicações na gestão do stock, além da criação destas novas referências.
O outro desafio que esta oportunidade tem está na distribuição. Até agora, a logística das companhias estava preparada para enviar grandes volumes às plataformas logísticas que seriam os responsáveis pela última milha. Neste caso, serão as marcas quem tem esta responsabilidade, e não é uma tarefa fácil.
É certo que também estão a aparecer muitas mais propostas para poder desenvolver esta última milha com sucesso. Por um lado, temos visto nos últimos meses algumas marcas a associarem-se a plataformas de delivery como Uber Eats ou Glovo para poderem enviar os seus produtos diretamente aos lares dos consumidores. E vamos continuar a ver muitas mais alianças como estas.
Ao mesmo tempo que no setor da restauração se fala muito das dark kitchens, restaurantes feitos só para takeaway, no retalho e na distribuição vamos a ver também como as dark shops vão aumentar. Pequenos armazéns que permitem ter os produtos mais perto dos consumidores e poder assim atingir melhor essa última milha. Estes pequenos centros logísticos, nomeadamente no centro das cidades, vão ser uns dos maiores avanços na logística junto com a automatização do picking que muitos grandes retailers estão já a desenvolver.
O futuro vai a ser muito mais líquido e vamos ver muitas mais opções para responder às novas exigências do consumidor. Este é o momento para o construir.
David Lacasa
Sócio da Lantern (consultora alimentar)