O erro do central

Escrevo dias depois do jogo entre Portugal e a Geórgia para o Euro 2004 em que dois erros cometidos por António Silva, o jovem central da nossa seleção, custaram outros tantos golos e porventura ditaram o desfecho do encontro.
As reações, como era de esperar, dividiram-se entre dois campos radicalmente opostos. De um lado, os defensores: “toda a gente erra”, “só teve um dia mau” e “quem não comete erros não amadurece (como jogador); do outro, os acusadores: “por mim não voltava a jogar”, “naquele nível não se pode errar” e “mais uma aposta falhada”. Pelo meio, é certo, ainda houve a desculpa habitual: “a culpa é do sistema de jogo”.
Resolvi pegar neste episódio porque se relaciona com um artigo que aqui escrevi recentemente – “Aprender com os erros” – e porque fornece uma magnífica oportunidade de testar com um caso concreto os princípios que nele defendi.
Como deve então um líder agir perante erros como os de António Silva?
A priori, os princípios que apresentei no referido artigo dão razão àqueles que defendem uma atitude mais leniente: abster-se de condenar e de punir, falar sobre o assunto, ultrapassar pela positiva, pôr a tónica nos pontos fortes da pessoa, recordar-lhe o que já fez de bom e apontar-lhe o que ainda pode melhorar.
Para alguns isto significa simplesmente esquecer e seguir em frente, o que é evidentemente um disparate: ausência de castigo não significa ausência de consequências. Quais?
Antes de mais, o autor do erro não atua isolado, faz parte de uma equipa, e as suas falhas não o afetam só a ele. Numa situação como a relatada, em que está tanta coisa em jogo, o que pensam os companheiros de equipa? Deve alinhar no próximo encontro, ou ser substituído? Se jogar, continuarão a confiar nele? E se ele falhar de novo? Pior: se outro jogador também cometer algum erro grave?
Confrontado com o difícil equilíbrio entre a motivação e o comprometimento do indivíduo e o estado de ânimo do grupo, o líder pode legitimamente optar por não correr riscos e deixar o primeiro de fora no próximo desafio. Ao tomar esta a decisão, porém, tem de deixar claro a um e a outros que não se trata de castigo ou de condenação, mas pelo contrário de criar espaço e dar tempo para que ambas as partes superem o problema e efetivamente aprendem com ele. A questão é: como?
Consideremos outro aspeto: a natureza do erro cometido e as circunstâncias em que ele ocorreu. Recordo as três categorias de erros propostas por Amy Edmonson – básicos, complexos e inteligente – por ordem crescente de inevitabilidade. Esta distinção é importante não só para ajuizar da responsabilidade do autor como, sobretudo, para escolher a forma mais correta para abordar o erro.
Tratou-se de um erro complexo e como tal imprevisível? Não creio: deu-se numa situação que certamente é treinada de forma exaustiva e que não foi perturbada por fatores inéditos, ou seja, que deve “sair bem mesmo sem olhar” (e desta vez saiu mal justamente por isso). Pelas mesmas razões, tão pouco é um erro inteligente; por definição, este resulta da exploração, do teste de soluções, da tentativa e erro; é justamente por isso o tipo de erro que se comete nos treinos, para explorar diferentes circunstâncias do jogo e determinar o que funciona e o que não funciona em cada uma. É sobretudo cometendo erros inteligentes que aprendemos a evitar erros, errando nos treinos até aprender a não errar – para não voltar a errar nos momentos decisivos.
Tudo indica assim que se tratou de um erro básico, isto é, algo que “tinha a obrigação de não acontecer”. Torna-se por isso mais difícil de perdoar?
Para ver mais claro, pensemos numa situação análoga. Como se sabe, não é fácil aterrar no aeroporto do Funchal, devido à proximidade da encosta e à frequência de ventos cruzados. Só pilotos devidamente “certificados” estão autorizados a fazê-lo, certificação essa que envolve muitas horas de treino em simulador e participação em aterragens sob o comando de um piloto mais experiente. Imaginemos que um piloto certificado falha a manobra (e, felizmente, sobrevive para responder por ela) – claramente, algo que também “não devia acontecer”. A certificação é-lhe mantida ou é retirada? Irá depender da investigação por parte das autoridades aeronáuticas que inevitavelmente se sucederá.
Dir-se-á que não são situações comparáveis devido à diferença de gravidade entre elas. Certamente; mas também é verdade que a essência do problema não muda: porque é que o erro ocorreu e qual o risco de se repetir. O líder não pode tomar nenhuma decisão – num sentido ou noutro – sem esclarecer esta questão. Isto exige uma ação deliberada, rigorosa, minuciosa, contextualizada, de exploração das possíveis causas e da melhor forma de as eliminar, em diálogo fraco com o autor do erro, com os colegas, e possivelmente com outros interessados. Adotar qualquer uma das posições expressas no início – “ora, toda a gente erra” (e portanto, não é preciso fazer nada) ou “não joga os próximos jogos” (até o erro ser esquecido) – resolve o problema. Como é óbvio, já não estamos a falar do caso concreto de António Silva, mas de todos os casos de todos os erros sobre os quais os líderes têm de tomar uma decisão.
Até ao momento em que escrevo, não é conhecida nenhuma decisão do selecionador. É bom sinal. Terá sabido resistir à tentação de uma decisão precipitada e está a fazer aquilo que só ele pode fazer: investigar, ouvir, discutir, refletir, e por fim tomar a decisão que permite que a equipa continue a aprender e a evoluir no futuro, sem esquecer que para isso tem de continuar a ganhar… agora!
(Ou então, talvez esteja a pensar no tal sistema de jogo…)

João Paulo Feijoo

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