Da parte do Governo «há uma prioridade inequívoca ao transporte ferroviário»

Em entrevista à Logística Moderna, Jorge Delgado, Secretário de Estado das Infraestruturas, faz um balanço do impacto da actual pandemia de Covid-19 na cadeia dos transportes, aborda os desafios da logística urbana e as alterações climáticas e fala dos investimentos que estão a ser feitos ao nível das infraestruturas. Sem esquecer a rodovia, o destaque vai para a ferrovia, com o programa Ferrovia 2020.

Logística Moderna – Antes de passarmos a outras questões, gostaria de começar por lhe pedir um balanço do que correu bem e menos bem no período crítico da pandemia?
 Jorge Delgado, Secretário de Estado das Infraestruturas – Os impactos foram aqueles a que todos assistimos, com todas as áreas a serem afectadas sem excepção. Tivemos serviços encerrados, cadeias de transportes, em particular dos bens alimentares e combustíveis, afectados.
Foi preciso muito trabalho, empenho e até criatividade por parte de todos, do Governo, das empresas, dos agentes do sector, mas também da sociedade civil, para conseguirmos garantir que o país não deixava de funcionar. Acho que conseguimos isso.
O Estado teve de garantir o pleno funcionamento da actividade transitária, o que permite planificar e organizar as operações relativas ao transporte internacional de mercadorias, a actividade logística complementar e a sua distribuição. Sem esta actividade não seria possível garantir que importamos o que a nossa indústria e os nossos cidadãos precisam de receber do exterior e, ao mesmo tempo, que exportamos o que a nossa economia precisa de exportar. O Governo no âmbito das suas funções, tudo tem feito para minimizar os impactos da crise que atravessamos, seja criando linhas de crédito às empresas, seja legislando de forma célere para adaptar as regras à excepcionalidade dos tempos que vivemos. Em particular nas áreas que tutelo, tivemos por exemplo de garantir que o transporte se mantinha fluido através da nossa única fronteira terrestre, que as cargas e descargas nos portos e nas plataformas logísticas continuaram a funcionar e que a cadeia de distribuição continuou operacional.

A pandemia para além de problemas directos, ajudou a trazer ao de cima outros problemas que estavam digamos “adormecidos”. A TAP é um deles. Para além do turismo a TAP é importante de um ponto de vista de carga aérea. Como vai ficar tudo e o que podem esperar os transitários?
Não estando o dossier TAP sob a minha tutela, penso que o Senhor Ministro das Infraestruturas e da Habitação, tem sido muito claro a explicar a solução encontrada para a TAP. Trata-se de uma empresa central para o equilíbrio das contas externas, num país na periferia da Europa que depende do transporte aéreo de uma forma que não acontece com outros países do centro da Europa. Devido à pandemia, e em especial durante o período de confinamento, a TAP redireccionou muitos dos seus recursos para o transporte de carga. As empresas nacionais exportam através da TAP mais de 50 mil toneladas de carga, equivalente a 2,6 mil milhões de euros por ano. Também por isto a intervenção do Estado na TAP foi crucial, porque as companhias de baixo custo não transportam carga no porão. Portanto, creio que o que o sector pode esperar, do lado da TAP, a manutenção de um parceiro económico central.

O Governo parece empenhado na construção do aeroporto do Montijo. O Aeroporto do Montijo vai ter estruturas para carga?
O projecto do aeroporto do Montijo inclui um pequeno terminal de carga, mas o seu efeito principal será reduzir o congestionamento do aeroporto Humberto Delgado, que permitirá libertar solos que podem ser utilizados por operadores de carga.

Destaque para a ferrovia

Como há vida para lá da pandemia e os problemas, e as infraestruturas têm um impacto estruturante no País, o que é que está previsto ser feito? Essas obras vão contribuir para a coesão territorial e sustentabilidade demográfica?
O país está a fazer um investimento muito importante na ferrovia, com o programa Ferrovia 2020. Os dois projectos mais importantes deste programa estão em curso, com obras no terreno, e são os projectos que permitirão melhorar muito as condições para o transporte de mercadorias internacional por comboio. Falo do Corredor Internacional Norte (a Linha da Beira Alta, entre Pampilhosa e Vilar Formoso) e do Corredor Internacional Sul (que liga Lisboa e Sines à fronteira do Caia). Estes dois projectos merecem aqui destaque porque eles resolverão os principais constrangimentos ao transporte ferroviário de mercadorias, aumentarão em muito a capacidade e eficiência deste transporte e garantirão a interoperabilidade com a rede espanhola. O Governo também já está a planear o ciclo de novos investimentos para a década de 2021 a 2030, também com uma grande ênfase à ferrovia, mas sem esquecer o investimento na rodovia, com a continuação do programa de ligação às áreas empresariais, só para dar um exemplo. Na ferrovia, o Programa Nacional de Investimentos 2030 tem planeados investimentos no eixo mais importante da rede ferroviária e a resolução dos principais estrangulamentos no acesso e atravessamento das áreas metropolitanas. No seu conjunto, ajudarão a potência tanto o transporte de passageiros como de mercadorias.

Há operadores logísticos que falam na falta de qualidade dos equipamentos logísticos e de oferta dos mesmos em certas zonas do País, por exemplo na região sul (armazéns/plataformas logísticas). Na opinião destes, o Estado deveria de alguma forma intervir e ajudar a regular essa oferta que é importante para o desenvolvimento dessas regiões, por exemplo criando / incentivando a criação de equipamentos para serem partilhados por vários operadores. É viável a intervenção do Estado nestes casos?
Neste campo, o Estado intervém através da Infraestruturas de Portugal, que é o gestor da rede rodoviária e ferroviária. No que diz respeito às plataformas logísticas, já se tem vinda a fazer um trabalho importante, nomeadamente, ao longo da rede ferroviária, como forma de facilitar a intermodalidade do transporte – o comboio é imbatível no custo do transporte em distâncias longas, mas não pode viver sem a estrada, que chega até à porta. Contamos prosseguir o reforço da rede de terminais logísticos no PNI2030, nomeadamente, na articulação com os portos. Só para dar um exemplo, está prevista a criação da Plataforma Rodoferroviária da Região Norte e da resolução de um conjunto de constrangimentos que existem no acesso ao Porto de Leixões.

Os desafios na logística urbana

Um dos impactos da pandemia foi o crescimento do comércio electrónico. As grandes cidades estão saturadas, há uma dificuldade tremenda de mobilidade. Com entregas B2C, essa saturação vai crescer. Os agentes económicos falam da necessidade da criação de pequenas plataformas logísticas dentro da malha urbana (que podem ser multi-operador) como forma de combater essa saturação e agilizar o e-commerce. Sentem necessidade da intervenção do Estado, pois há falta de terrenos e espaços. O Estado Central pode intervir em colaboração com as Câmaras Municipais e operadores privados?
A logística urbana já era um problema, mesmo antes deste crescimento do comércio electrónico e das entregas directas ao consumidor. Estes novos segmentos estão a acrescer ao problema que já existia nas cidades com as entregas de fornecedores, as cargas e descargas, com ocupação de espaço público, congestionamento, tráfego e poluição. Isto é uma área em que as autarquias têm o papel chave, uma vez que são elas que regulam o espaço público e o trânsito nas respectivas cidades. Ainda assim, as soluções que identifica, com a criação de centros logísticos distribuídos, que poderiam ser abastecidos com menor perturbação e de onde poderiam, depois, sair as etapas finais da cadeia logística, usando, porventura, meios mais ligeiros, inclusive com bicicletas de carga, por exemplo. É claro que o estado central também pode ter aqui um papel de mobilizar vontades e fundos para estas iniciativas, e é por isso que foi incluído no PNI2030 um programa específico para a logística urbana.

Em Portugal muitas vezes agimos, mas já tarde. O caso do plano de plataformas logísticas é um bom exemplo. Algumas não saíram do papel e outras têm uma utilização limitada, porque os seus utilizadores já tinham resolvido o problema de forma individual. Neste caso, a necessidade está a ser sentida hoje e sabe-se que vai crescer, é discutida em iniciativas como a conferência sobre logística urbana da Associação Portuguesa de Logística. As grandes empresas como a Amazon, estão a construir dezenas de plataformas deste tipo em países como a Alemanha. Há algum plano para a intervenção do estado nesta área? Faz sentido o Estado intervir? 
Como disse anteriormente, estamos empenhados em continuar a dotar o país de uma rede adequada de plataformas logísticas que ligue as redes ferroviária, rodoviária, os portos e as zonas industriais mais importantes. Além disso, temos o Programa de Valorização das Áreas Empresariais (PVAEI), que tem dado um bom contributo para facilitar o acesso a zonas industriais por todo o país, facilitando a entrada e saída das mercadorias e reduzindo os custos para as empresas que se instalam nestes locais. Este programa, que eu consideraria muito bem-sucedido, vai ter seguimento no PNI2030, com um PVAE II.

Alterações climáticas são prioridade

Também um problema importante e na ordem do dia são as alterações climáticas. O e-commerce e as entregas generalizadas B2C, embora populares, são considerados por muitos insustentáveis de um ponto de vista ambiental. O que lhe parece?
É claro que sim, as alterações climáticas são uma das preocupações mais importantes que temos no desenvolvimento das nossas políticas e na escolha das nossas prioridades. No que diz respeito às entregas, que no fundo se refletem na etapa final da cadeia, em que o produto chega à porta de casa do cliente em vez de chegar a uma loja onde o cliente teria de se deslocar, não é muito evidente que sejam mais insustentáveis do ponto de vista ambiental, se a alternativa for cada pessoa ter de se deslocar à loja para adquirir o produto. Não conhecendo estudos detalhados sobre o tema, parece-me que não é trivial determinar qual dos modelos é mais prejudicial ao ambiente. Em todo o caso, isso não altera os objectivos. No caso de estarmos a falar de um estafeta que faz uma entrega, se esse estafeta se puder deslocar num veículo eléctrico ou numa bicicleta de carga, com uma rota optimizada em tempo real por um algoritmo para reduzir a distância percorrida, estaremos a reduzir a pegada ecológica das entregas. Se for uma pessoa a deslocar-se a uma loja, queremos que essa deslocação seja, tendencialmente, feita em transporte colectivo, também reduzindo a pegada ecológica.

O que é que está ou vai ser feito pelo Estado (directamente ou por intermédio de organismos internacionais / convenções) nos transportes (caso da IMO 2020), nas infraestruturas para minorar ou ajudar a combater as alterações climáticas?
Da nossa parte, há uma prioridade inequívoca ao transporte ferroviário, que é, sem sombra de dúvida, aquele que é mais sustentável do ponto de vista ambiental, e que se materializa nos projectos e planos de investimento que já foram referidos. Há também as iniciativas que já foram referidas em termos da rede de plataformas logísticas e da logística urbana que, em conjunto com incentivos à electrificação das frotas rodoviárias ou à transição para combustíveis alternativos, continuarão para a progressiva descarbonização do transporte.
Artigo publicado na edição nº 175 da Logística Moderna

(descarregar versão online em www.logisticamoderna.com)

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