«Esta crise pode servir de alavanca para a tal cadeia de transporte integrada»

O transporte aéreo tem atravessado uma fase conturbada desde a chegada do novo coronavírus. Com as frotas praticamente paradas devido às medidas de contingência implementadas pelos governos à escala global, o transporte aéreo de mercadorias tornou-se um “verdadeiro quebra-cabeças”. Ciente do seu papel a TAP Air Cargo arregaçou as mangas e readaptou as suas operações à nova realidade. Em entrevista à Logística Bruno Aires, Country Manager Portugal da TAP Air Cargo, fala das medidas implementadas, dos desafios e das expectativas para os próximos tempos.

Logística Moderna – O impacto no transporte aéreo tem sido enorme a nível mundial. Uma grande parte da carga aérea é feita em aviões de passageiros, estes por sua vez estão ainda praticamente paralisados, qual foi o impacto na TAP Air Cargo? Quais as principais medidas de contingência?
Bruno Aires – O impacto na TAP Air Cargo foi gigantesco, pois tínhamos cerca de 400 voos por dia e praticamente ficámos com toda a frota parada. Nunca esperamos que tal coisa fosse possível, mas de repente vimo-nos sem voos para destinos que tínhamos 100% de load factor. Obviamente que não parámos, readaptámo-nos rapidamente para continuar a dar soluções aos nossos habituais clientes. Começámos a comprar espaço em outras companhias aéreas para poder ir ao encontro das necessidades dos nossos clientes. Criámos o projecto que chamamos de “aviões cargo only”, são os nossos aviões A339-900 Neo a operar apenas com carga para destinos onde exista procura. Colocámos os nossos A339-900 Neo a voar da China para Portugal, Brasil e África, de forma a trazer material médico utilizado na luta contra a pandemia Covid-19.

O transporte aéreo tem tido um papel muito importante no transporte de carga urgente no combate à pandemia. Considerando que muita desta carga provém da China, quais os principais desafios que sentiram perante as restrições à exportação e limitação ao espaço aéreo definidos por esse país?
Confesso que foi realmente um desafio para toda a equipa esta nova situação, novas rotas, aeroportos nunca voados, rotas record no que diz respeito à longevidade. Tivemos que realmente ser rápidos, entender rapidamente como se actuava neste mercado e agir. A experiência de toda a equipa TAP Air Portugal foi decisiva para a sucesso de todas as operações até ao momento, posso afirmar que todas as áreas da TAP encararam este desafio com um espírito de missão enorme e como tal, só poderíamos ter êxito.
No que diz respeito a desafios específicos, eu diria que todo o processo é complexo, desde o pedido de autorizações de voo, a exigência das datas contratadas, a documentação necessária que é necessário reunir para poder submeter todos os pedidos, a coordenação e contacto com as entidades na China e com as entidades de alguns Países para os quais necessitamos de autorização para voar no seu espaço aéreo.
Relativamente a questões operacionais na China, obviamente que as condições e a complexidade para a operação eram enormes, desde congestionamentos para entrega de carga, dificuldades na Alfândega local, handlers sobrecarregados com vários voos, enfim exigiu de nós uma flexibilidade enorme, de forma que pudéssemos sempre salvaguardar os interesses dos nossos clientes. Posso dizer que felizmente até à data, fizemos muitos voos em aviões da frota TAP (A330-900Neo, vários cargueiros puros, e todos eles foram concluídos com sucesso.

«Toda a ajuda ao sector não será demais»

A paralisação deve-se apenas ou maioritariamente ao facto das frotas estarem confinadas por imperativos legais ou também houve uma redução da procura por parte do mercado?
A paralisação deveu-se inicialmente às normas imperativas que cada País foi criando, mas claro que a procura caiu de forma abrupta. As pessoas assustadas com esta pandemia global foram sendo obrigadas a ficar em casa, como tal, não havendo qualquer procura, não restava outra alternativa senão parar.

Para apoiar as operações do transporte aéreo de carga neste período foram eliminados alguns dos “obstáculos económicos”, como cobranças de sobrevoo, taxas de estacionamento e restrições de slots, etc.. Está a ajudar? Algum deles, está a ter mais impacto em particular? No futuro poderá haver espaço para facilitar estes processos?
No contexto de TAP Air Cargo, não posso responder com assertividade a esta questão, pois beneficiamos do que foi concedido à TAP Air Portugal, usamos os aviões de passageiros, não temos ainda na própria frota aviões cargueiros puros. No entanto, na minha opinião, acho que toda a ajuda que se possa dar a este sector, nunca será demais, porque o impacto negativo é tão grande que qualquer acção que possa minimizar será bem vinda, e claro, quanto mais longa se puder tornar, melhor, pois não tenho dúvida que o sector da aviação será dos últimos a recuperar deste efeito negativo criado por esta pandemia.

Voos especiais no combate à Covid-19

A TAP Air Cargo à semelhança de muitas outras companhias, tem uma frota de camiões para fazer ligações por terra da carga entre aeroportos (e.g. Barcelona – Lisboa). Estas ligações estão a funcionar?
Sim, neste contexto de pandemia, nunca parámos. Tentamos sempre dar continuidade à cadeia logística que o nosso cliente está habituado e como tal, mantivemos os nossos camiões a trazer carga da Europa para o nosso Hub em Lisboa e do Hub para a Europa, com carga de África, Brasil e Europa. Estamos num local geográfico perfeito para ligar de forma ágil e rápida estas cargas, portanto faz todo o sentido dar continuidade a este meio de transporte como complemento à nossa operação aérea. Para que fiquem com uma ideia, temos por exemplo camiões regulares de/e Para Espanha, França, Alemanha, Itália, Países Baixos e Reino Unido.

Fizeram voos especiais para abastecer o país de materiais sanitários e de protecção pessoal? Pode dar alguns exemplos?
Fizemos vários voos para abastecer o país de material usado na luta contra o covid, aliás, arrisco-me a dizer que fomos os primeiros a chegar a Portugal com este tipo de material. Fizemos voos de Shangai para Lisboa, Shangai para o Porto, Pequim para Lisboa, Guangzhou para Lisboa, Zhengzhou para Lisboa, de Nanjing para Lisboa, de Xiamen para Lisboa, de Xiamen para o Porto. Trouxemos ventiladores, máscaras, batas, luvas, viseiras, álcool gel desinfectante. Além do nosso País, fizemos voos para abastecer outros Países, nomeadamente Brasil e Cabo Verde.

Algumas companhias expandiram ligações para outras cidades do mundo para lidar com o estrangulamento verificado no transporte de cargas durante a crise do coronavírus. A TAP Air Cargo fez alguma alteração a este nível?
Eu diria que a TAP Air Cargo não expandiu as suas ligações. Tornou-se foi ainda mais flexível, de forma a ir ao encontro ao que era pedido pelos seus clientes. Por exemplo, existindo procura ou pedidos para um determinado destino, tentamos sempre ter solução. Tentamos sempre manter uma elevada proximidade com o nosso cliente, acreditamos que é um dos elementos chave para o sucesso, pois estamos mais perto de dar a solução desejada.

Alguma retoma, mas longe das quantidades pré pandemia

Tiveram necessidade de adaptar algum avião para conseguir transportar um maior volume de carga (ex. EPI’s)?
Sim, adaptámos dois A330-900 Neo. Retirámos as cadeiras da cabine, dando uma capacidade para carga superior à existente no avião normal com cadeiras, estamos a falar de um aumento considerável de espaço para podermos transportar carga médica. Obviamente, que estes aviões estão à disposição dos nossos clientes e além de serem usados na rota China-Portugal, ou rota China qualquer outro País, podem também ser usados nos nossos “cargo only” para o Brasil, USA, Maputo ou Luanda.

Ainda em fase de Estado de Emergência, as tripulações de voos de carga aérea estiveram isentas dos requisitos de quarentena de 14 dias?
As tripulações não estiveram isentas dos requisitos de quarentena de 14 dias, o planeamento é que era efectuado de forma muito rigorosa, de forma a evitar que as nossas tripulações tivessem de ficar de quarentena longe dos seus e das suas casas.

Com a economia Chinesa a regressar à “normalidade” e as economias dos outros Países Europeus e dos EUA, a começarem a sair da fase de confinamento, já se nota alguma recuperação na carga aérea?
Sim, existe alguma retoma, mas ainda muito longe das quantidades que se transportavam. No entanto, acredito que em breve, com o regresso à normalidade, as quantidades voltem à normalidade, obviamente que dependerá das condições que cada País atravessa, mas haverá a médio prazo, recuperação no sector.
Devo, no entanto, referir que a carga aérea vinha em queda desde há sensivelmente dois anos, algo que na TAP Air Cargo não se verificou. Nós vínhamos a contrariar o mercado internacional de carga aérea, pois crescíamos enquanto o mercado desce, esperamos continuar a fazê-lo.

«As crises obrigam-nos a pensar processos»

As crises apesar de indesejadas, muitas vezes têm consequências positivas não previstas. Acha que poderá haver alguma alteração no peso relativo da Carga Marítima, Carga Aérea, Carga Ferroviária, Carga Terrestre, que ajude a dinâmica da Cadeia de Abastecimento no Comércio Internacional?
Sem dúvida que das crises retira-se sempre experiências muito positivas. As crises obrigam-nos a pensar “fora da caixa”, obrigam-nos a sair da nossa zona de conforto e a repensar processos e formas de agir.
Relativamente à questão, acho que esta crise pode servir de alavanca para a tal cadeia de transporte integrada que se fala tanto, mas que ainda não está implementada na totalidade. Por exemplo, é fácil complementar o avião com o camião, o camião com o navio, mas relativamente ao ferroviário com o avião ou ao navio com o avião de forma integrada, o processo é ainda complexo, posso referir, que na TAP Air Cargo já o fizemos algumas vezes, e.g avião-camião-navio, mas o processo é desafiador.
Concluo, no entanto, que o tipo de carga a transportar não sofrerá grandes alterações, ou seja, o que por norma vai via aérea, continuará a seguir sempre que a sua urgência o justificar e a sua natureza o exigir. Contudo, o mundo é dinâmico e é normal que os meios de transporte se actualizem, se adaptem de forma a mostrarem que são um meio de transporte ideal para o transporte de determinada carga.

Quando pensa que a situação começará a estar normalizada?
Não é fácil prever, acho que será uma recuperação muito lenta. Como referi a TAP Air Portugal tinha aproximadamente 400 voos por dia, voava para mais de 80 destinos, acredito que a recuperação acontecerá, será gradual, mas irá depender muito da procura, vai depender muito dos efeitos que esta pandemia irá deixar na população. Precisamos que as pessoas voltem a viajar, que percam o medo de entrar num avião, que ganhem confiança nos procedimentos definidos pelas diversas entidades para garantir que se viaja em segurança. Acredito que a evolução será algo morosa, mas acontecerá.

Artigo publicado na edição nº 175 da Logística Moderna

(descarregar versão online em www.logisticamoderna.com)

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